'Turismo de Instagram' e pousada de celebridades geram recorde em multas ambientais em Fernando de Noronha


Em 2024, até agosto, foram mais de R$ 6,5 milhões distribuídos em 18 autos de infração. Servidores apontam “turismo de Instagram” e preocupação com aumento de construções irregulares em pousadas, bares e restaurantes
Ministério do Turismo via BBC
O influenciador digital Leonardo Picon, o Léo Picon, esteve com amigos em Fernando de Noronha no início do ano, passeio que rendeu uma série de notícias em sites de celebridades.
Rendeu também uma multa ambiental não noticiada. O influenciador foi autuado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), por ter dado comida para uma fragata (um tipo de ave marinha), o que é proibido. Ele foi multado em R$ 1 mil pelo órgão federal.
Os fiscais acrescentaram ao documento prints da conta de Picon no Instagram para reforçar a multa. O relatório destacou que Picon “é uma pessoa influente nas redes sociais” e que “tem visitado Noronha por diversas vezes.”
A multa aplicada a Picon ajuda a ilustrar uma situação que preocupa cada vez mais os servidores que atuam com conservação ambiental em Noronha: o aumento do turismo impulsionado por influenciadores em uma área que não permite mais nenhuma expansão urbana e que possui, ao mesmo tempo, pousadas e bares tentando ampliar seus espaços de forma “escondida”.
É o “turismo do Instagram”, nas palavras de um dos entrevistados para esta reportagem.
Globo Repórter mostra como é mantido o equilíbrio das espécies em Fernando de Noronha
Nos últimos dois anos, multas ambientais aumentaram no arquipélago de 26 quilômetros quadrados e 3 mil habitantes. Em 2024, até agosto, foram mais de R$ 6,5 milhões distribuídos em 18 autos de infração, segundo levantamento feito pela BBC News Brasil.
Em valores, é um recorde para o ICMBio no local. Em total de multas, é a maior quantidade desde 2016, segundo dados produzidos pela instituição e analisados pela reportagem. Servidores dizem que há ainda um passivo de multas que ainda poderão ser aplicadas.
Funcionários que trabalham com a proteção ambiental em Fernando de Noronha admitem dificuldade do poder público para lidar com o que chamam de novas características do turismo na região. Dizem também que o controle do número de pessoas visitando a ilha não tem funcionado.
Imagem do Instagram de Léo Picon aparece no auto de infração lavrado pelo ICMBio, obtido pela BBC News Brasil, com tarjas em parte das informações, incluindo o rosto do influenciador
Reprodução/ICMBio via BBC
Restrições e taxa
Fernando de Noronha é reconhecido pela Unesco como patrimônio Natural da Humanidade desde 2001. Estar nesta lista significa, na prática, que há preocupação internacional com o estado de conservação da área.
O arquipélago foi integrado ao Estado de Pernambuco nos anos 80 e lá foram criadas unidades de conservação justamente para proteger a biodiversidade na região.
Por isso, há uma série de restrições no local. A visita em atrativos do parque é controlada pelo governo e só pode ser feita com agendamento.
Também há a cobrança para a entrada, paga por cada turista. É a Taxa de Preservação Ambiental, ou TPA, que custa R$ 97,16 por um dia (o custo pode ficar mais barato a depender da quantidade de dias) e pode ser pago pelo site do distrito.
“As restrições em Noronha são muitas e devem ser respeitadas. As placas proibitivas não foram afixadas para limitar o prazer do visitante, mas para prolongar a vida de todos os habitantes do arquipélago, plantas e animais, principalmente daqueles que não têm voz para expressar o seu desejo de continuar vivos”, escreve o órgão federal na multa aplicada ao influenciador.
Picon afirmou à BBC News Brasil, por meio de sua conta no Instagram, que não recebeu a multa e só soube do auto de infração pela reportagem.
Ele reclamou da falta de instruções claras sobre as regras e diz que o ICMBio poderia se aliar aos influenciadores na conscientização ambiental aos turistas.
“Faço projetos socioambientais na ilha desde 2016, já passei mais de 120 dias na ilha e em nenhum momento tive acesso oficial a essas leis. Escutamos muito de moradores o que pode e o que não pode, mas em nenhum momento o turista é instruído de forma oficial a essas regras, o que induz o turista a cometer por ingenuidade um ato que o ICMBIO caracteriza como nocivo, mas que não há uma educação aos turistas do porquê esse ato é nocivo.”
Ele também negou que estivesse alimentando a fragata. Disse que a ave voou atrás dele, que estava com uma sardinha na mão.
“Eu estava com um pescador, que estava cercado por elas em sua rede. Ele me deu uma sardinha na mão e sabia o que aconteceria a seguir: elas começaram a voar atrás de mim, atrás da sardinha. Na imagem é possível ver que eu não estou voluntariamente alimentando-as. As fragatas se alimentam, também, roubando alimentos de outras espécies. Não há dano causado.”
Já a administração do ICMBio afirma que o auto foi entregue pelos correios e que solicitou que o influenciador removesse os vídeos postados por ele, por contrariar normas ambientais.
Buraco do Galego vira “piscina do Neymar”
Servidores apontam dificuldade em controlar o fluxo de visitas no arquipélago
Agência Brasil via BBC
Servidores do ICMBio que atuam no local falam em um fenômeno pós-pandemia que mudou o perfil dos visitantes.
Antes, eram ecoturistas. Agora, aumentou o fluxo de influenciadores digitais, como Picon, que tornam o ponto muito mais requisitado.
“É o turismo de Instagram, né? A galera quer tirar as mesmas fotos, dos mesmos lugares”, diz Mário Douglas, coordenador da área temática de proteção do ICMBio de Fernando de Noronha.
O Buraco do Galego, piscina natural localizada na Praia do Cachorro, por exemplo, há tempos não é mais chamado assim, segundo servidores. “Hoje é conhecido como a piscina do Neymar, porque há uma foto dele com a Bruna Marquezine”, conta.
“Agora tem fila de pessoas para tirar a mesma foto. É um tipo de turismo que é novo, que é diferente. E é difícil de lidar, a gente ainda não sabe muito bem como potencializar o que tem de bom e reduzir o que tem de ruim.”
O reforço nas infrações reflete o aumento de visitantes que a região recebeu no pós-pandemia do coronavírus. Só neste ano, em média, 10 mil pessoas visitaram o local ao mês, isso contando só os que pagam ingresso para visitar o parque nacional.
Em alguns meses, como janeiro e agosto, o número passou de 12 mil, mais do que deveria. Um acordo entre o governo federal e o Estado de Pernambuco determina que o máximo de visitantes por mês deve ser de 11 mil pessoas.
Segundo a administração do ICMBio, o controle do fluxo é feito pelo número de vagas em voos, mas os próprios servidores admitem que isso não funciona como esperado e já estudam novas medidas de controle.
“A gente está percebendo que não está dando certo, não está conseguindo controlar”, diz Lilian Hangae, chefe do ICMBio de Fernando de Noronha. “Temos um desafio de manter Noronha com suas caractéristicas de conservação, de alta biodiversidade.”
“É um desafio que não cabe só ao ICMBio. É uma escolha do Estado, do país inteiro e dos próprios moradores. Do jeito que está, o limite realmente está pondo em risco a conservação”, diz ela, que atribui o aumento de fluxo ao pós-pandemia e também ao destaque que a ilha recebe, citando, por exemplo, a Praia do Sancho, que venceu, em 2023, votação do site TripAdvisor como melhor praia do mundo.
“Fernando de Noronha entrou no imaginário do brasileiro, como um sonho. Muita gente que vem pra cá tem grana. Mas tem muita gente que junta dinheiro o ano todo, que sonha em casar em Noronha”, acrescenta Hangae.
O governo de Fernando de Noronha, vinculado ao Estado de Pernambuco, informou, em nota, que não autoriza aumento no número de voos diários à ilha que impacte no limite estabelecido pelo acordo de gestão compartilhada, celebrado entre o Estado de Pernambuco e a União.
Construções de pousadas e bares estão entre infrações mais altas
Além dos próprios turistas, o poder público enfrenta pressão ainda maior das empresas que esperam receber esses turistas de alto poder aquisitivo, como as do setor de pousadas. “Podemos inferir que os delitos ocorridos na região são, em sua quase totalidade, ligados ao turismo”, destacou o órgão.
São, em sua maioria, casos de ocupações irregulares. Construções e reformas sem autorização, por exemplo.
“Existe uma pressão por aumento do número de pousadas. Todo mundo quer ganhar mais dinheiro. E aqui tem um problema sério porque você tem limite geográfico. Não dá, não cabe, não comporta”, diz Mário Douglas, do ICMBio.
O tamanho da área urbana de Fernando de Noronha também entrou no acordo de gestão compartilhada entre a União e o Estado de Pernambuco. O documento diz expressamente que o poder público se compromete a “não ampliar o perímetro urbano atualmente existente.”
Para garantir isso, estão previstas medidas administrativas e judiciais para coibir construções irregulares, seja por meio de sua regularização ou demolição de obras.
O que acontece, na prática, segundo servidores do ICMBio ouvidos pela BBC News Brasil, é que as empresas vão “esticando” seus domínios de forma irregular, tentando despistar o poder público. “Construção irregular. Rápidas, feitas em horários alternativos, mais escondido possível. É gato e rato”, diz Mario Douglas.
Das multas aplicadas em 2024, a maioria tem relação com obras consideradas irregulares, como ampliação de terrenos, construções sem licença, reforma de imóvel, dentre outros.
Um caso emblemático é o que puxa o valor das multas de 2024 para um recorde. A Atlantico Sul Empreendimentos, empresa responsável pela Pousada Morena, foi multada duas vezes neste ano. O motivo, segundo o ICMBio, é a ampliação da área da Pousada Morena, com instalação de deck e ofurôs em uma área protegida da ilha. Somadas, as infrações passam de R$ 6 milhões.
A Pousada Morena é uma das mais luxuosas de Fernando de Noronha. Um apartamento de 23 metros quadrados, para até duas pessoas, sai por R$ 4,2 mil por duas noites. O Bangalô Master, para até três pessoas e com 80 metros, custa R$ 8,5 mil. A pousada já atraiu celebridades como a cantora Paula Fernandes, que esteve lá em agosto deste ano. O hotel também já figurou em um ranking dos 50 melhores do Brasil, feito pela revista Exame.
Os problemas entre o órgão fiscalizador e a pousada não começaram agora. O levantamento da BBC News Brasil identificou ao menos outros dois episódios, um em 2012, no valor de R$ 200 mil, e outro de R$ 100 mil, em 2015. Os fiscais anotaram no relatório que estiveram na pousada e identificaram “grande quantidade de obras em andamento”, incluindo um bangalô e a piscina em área de conservação.
Imagem de construção em pousada aparece em auto de infração do ICMBio
Reprodução/ICMBio via BBC
Neste ano o ICMBio determinou a demolição do chamado “espaço relax”, instalado em frente à área da piscina da pousada. O órgão entende que não poderia haver expansão da obra. Segundo a empresa, o objetivo é proporcionar um local para descanso e convivência e com vista privilegiada para o oceano.
Em nota enviada à reportagem, a Atlantico Sul Empreendimentos afirmou que as multas de 2012 e 2015 se referiam a um mesmo fato e foram contestadas na Justiça, obtendo a empresa “decisão favorável reconhecendo seus direitos, se encontrando esta decisão transitada em julgado”.
“Já em relação aos recentes autos de infração, a empresa discorda veementemente dos motivos ensejadores de suas lavraturas e vem exercendo seu legítimo direito de defesa, já tendo apresentado defesas administrativas perante o Órgão, as quais se encontram pendentes de decisão”, diz a nota.
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