Não se pode levar a ferro e a fogo o discurso econômico de Javier Milei. Suas propostas radicais calharam bem à maioria dos eleitores argentinos, insatisfeitos com a inflação galopante, a recessão e os níveis crescentes de pobreza.
No entanto, a partir de 10 de dezembro, quando assumir a Casa Rosada, o presidente eleito estará sujeito a uma série de restrições políticas, técnicas e corporativistas que tendem a diluir o seu ímpeto por mudança, tão presente em seus showmícios.
Apesar disso, do ponto de vista de um analista brasileiro preocupado com nossa agenda de produtividade – em outras palavras, olhando para o meu próprio umbigo – uma das áreas em que desejo sucesso ao novo presidente argentino é na sua intenção de chacoalhar as bases do Mercosul.
Há muito o processo de integração de Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai (a Venezuela se juntou posteriormente ao bloco, mas se encontra suspensa hoje em dia) tornou-se um pacto de mediocridade que se procura combater com band-aid a grave hemorragia de competitividade da indústria dos países-membros.
Os dados de transações comerciais do Mercosul revelam duas realidades completamente distintas. Para o resto do mundo, argentinos, brasileiros, paraguaios e uruguaios vendem principalmente produtos agropecuários e minerais. Entre os países do bloco, porém, predomina o comércio de bens manufaturados, como automóveis, material elétrico, alimentos industrializados, produtos de higiene e limpeza e outros bens de consumo duráveis e não-duráveis.
Em outras palavras, no Mercosul para Fora (Extrazona, como dizem as estatísticas oficiais), estão concentrados os produtos em que possuímos vantagens comparativas, majoritariamente bens de baixo valor agregado. Já no Mercosul para Dentro (Intrazona), estão os produtos nos quais não conseguimos vender no exterior, e só são competitivos localmente por causa da diferença entre a isenção tarifária interna versus as elevadas Tarifas Externas Comuns, impostas aos concorrentes de fora do bloco (principalmente chineses, americanos e europeus).
Sob esse aspecto, o Mercosul representa a continuidade, na atualidade, de nosso passado protecionista, que gerou frutos artificiais de um longo processo de industrialização impulsionada por incentivos tributários, crédito público subsidiado, reservas de mercado e políticas de conteúdo nacional.
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Graças a tarifas externas excepcionalmente altas aplicadas a categorias como máquinas e equipamentos, automóveis, eletroeletrônicos, têxteis e calçados, são poucos os países do mundo que têm uma proteção tarifária mais alta do que os integrantes do Mercosul.
De acordo com os dados de 2022 da Organização Mundial do Comércio, apenas Barbados, República Centro-Africana, Tunísia, Ruanda, Burundi, Congo, Uganda, Antígua e Barbuda, Nepal, Granada, Togo, Benin, Cabo Verde, Índia, Marrocos, Maldivas e Zâmbia são mais fechados que nossos sócios do Mercosul.
O Mercosul também tem um processo de governança que atravanca as tentativas de integração com as principais economias do mundo. Muito em função das dificuldades macroeconômicas cíclicas vivenciadas por argentinos, brasileiros, paraguaios e uruguaios, qualquer negociação com países ou blocos avançados enfrenta resistências internas que dificultam a celebração de parcerias.
Como base de comparação, tome o caso do México, que assinou nos últimos anos 24 acordos comerciais, com países que representam 45% do PIB mundial. Ou a Colômbia, que com apenas 13 tratados, consegue comercializar sem tarifas com 56% do PIB do mundo. E ainda há o caso mais bem sucedido na América Latina: com 25 acordos comerciais, o Chile consegue abarcar 77% do PIB mundial, abrindo fronteiras para seus produtores e melhorando o acesso a bens e serviços mais baratos vindos de toda parte.
No caso do Mercosul, desde 1991 só foram firmados tratados comerciais com o México (2003), Cuba (2007), a União Aduaneira da África Austral (bloco que reúne África do Sul, Botswana, Lesoto, Namíbia e Suazilândia, em 2016) e Egito (2017). Com isso, conseguimos atingir a assombrosa soma de 1,7% do PIB mundial.
Nossa grande aposta, neste momento, é o acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia. Mesmo neste caso, em que finalmente estamos próximos de formalizar uma parceria após mais de duas décadas de negociações, questões ambientais e protecionistas ainda são obstáculos. E ainda que a assinatura venha a ocorrer, o longo prazo de implementação (que chega a 15 anos, no caso da indústria automobilística) e a extensa lista de exceções sinalizam cautela para os otimistas que acreditam que essa será uma bala de prata na nossa estratégia comercial.
Não é à toa que há muito o presidente uruguaio, Luis Alberto Lacalle Pou, tem manifestado seu interesse de levar seu país a um voo solo em matéria comercial.
Não tenho ilusões de que o Javier Milei terá força política para desagradar a parcela do empresariado argentino que se beneficia da proteção provida pelo Mercosul.
Mas a sua chegada à Casa Rosada promete pelo menos abalar o marasmo comercial que caracteriza o bloco há tantos anos e é um obstáculo à liberalização comercial no Brasil.