O embaixador do Brasil em Buenos Aires, Julio Bitelli, afirmou em entrevista ao Valor que a vitória do candidato da extrema-direita Javier Milei na Argentina vai obrigar os países-membros do Mercosul a fazer uma reavaliação do bloco, que já passa por dificuldades existenciais em razão do Uruguai, governado por uma coalizão de centro-direita e que negocia um acordo bilateral diretamente com a China, o que contraria as regras do Mercosul.
Aos 62 anos, Bitelli desenvolveu parte de sua carreira diplomática na Argentina, onde serviu em outros dois períodos: entre 2003 e 2007, fase inicial do kirchnerismo, movimento liderado pelos ex-presidentes Néstor e Cristina Kirchner, e depois entre 2010 e 2013. É o embaixador brasileiro em Buenos Aires desde maio deste ano.
Apesar das críticas constantes de Milei ao Brasil presidido por Luiz Inácio Lula da Silva (PT), além de sua escancarada aliança com o bolsonarismo, Bitelli disse que a eleição do “libertário” vai obrigar Brasília a trabalhar numa “reacomodação” com o novo governo argentino, que será empossado no próximo dia 10 de dezembro.
No momento da entrevista, feita por telefone nesta segunda-feira (20), em Brasília, o ministro da Comunicação Social do governo, Paulo Pimenta, dizia exatamente o contrário do pregado pela diplomacia. Para Pimenta, Lula deveria conversar com Milei só depois de um pedido de desculpas do argentino.
A seguir, trechos da entrevista com o embaixador Julio Bitelli.
Valor: De que forma a vitória de Milei ameaça a relação entre Brasil e Argentina?
Júlio Bitelli: Ameaça é uma palavra muito dura. Na verdade, a vitória do Milei nos obriga a trabalhar essa relação, é importante que haja uma reacomodação. O próprio presidente Lula foi claro ao dizer que o Brasil estará sempre aberto a conversar, a negociar e a trabalhar com a liderança que o povo argentino escolher democraticamente. Foi o que aconteceu ontem, uma eleição limpa, uma vitória muito clara. O governo argentino chega com legitimidade e é com esse governo que o Brasil vai trabalhar.
Valor: O próprio entorno do candidato Milei amenizou no final da campanha o tom crítico ao Brasil e sinalizou com uma relação ‘normal’. Vocês já sentiram isso nos contatos em Buenos Aires?
Bitelli: Sim, tive vários contatos com pessoas próximas ao presidente eleito e ouvi muitas mensagens de que a relação com o Brasil seguirá sendo prioritária e merecendo atenção especial. Essa é a nossa expectativa e, do ponto de vista brasileiro, é o que vai acontecer, continuaremos a dar toda atenção à relação com a Argentina.
Valor: Uma questão importante é sobre o Mercosul, que já enfrenta dificuldades em negociações com o Uruguai, em razão da postura do governo uruguaio. Milei também questiona o Mercosul. O futuro do bloco está comprometido?
Bitelli: Óbvio que essa movimentação obriga uma reavaliação do Mercosul. Mas o próprio discurso do Milei foi evoluindo ao longo da campanha. Ele em algum momento chegou a falar em sair do Mercosul, nos últimos tempos falou que o Mercosul não funciona, mas que é preciso melhorar, ampliar a agenda externa do bloco. Se a disposição é discutir formas de aprimorar o Mercosul a partir de dentro, o Brasil é completamente a favor. Qualquer coisa que faça o Mercosul funcionar melhor é do nosso interesse. Agora, as decisões no âmbito do Mercosul são tomadas por consenso entre os quatro países membros [Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai].
É óbvio que a mudança na Argentina é importante, vai ser preciso ouvir do novo governo argentino quais são seus interesses e prioridades.
Valor: Para o empresariado brasileiro presente na Argentina, qual o temor em relação a Milei? Esse histórico recente da relação bilateral, com tantas medidas protecionistas, pode se acentuar?
Bitelli: Teoricamente, se você ouve o que o candidato Milei disse ao longo da campanha e ao longo de toda sua vida pública, ele é favorável ao livre comércio. Isso traria, digamos, certas facilidades em termos de eliminação de restrições que existem atualmente. Mas é utópico pensar que o comércio internacional possa recair integralmente na mão do setor privado, sem nenhuma interferência estatal.
Há elementos do comércio internacional que requerem uma participação do Estado. Vai ser preciso entender as ideias do novo governo argentino e, a partir daí, buscar uma forma de preservar o comércio bilateral, que sofreu uma queda relativamente sensível nos últimos dez anos. É do nosso interesse e também do interesse argentino, suponho, voltar a levar esse comércio bilateral a níveis mais altos.
Valor: O presidente eleito ainda não detalhou suas medidas econômicas, o que gera inquietação em muitos estrangeiros com negócios na Argentina.
Bitelli: Mas isso é normal. O presidente foi eleito ontem, hoje ele já começou a anunciar alguns nomes, já começou a anunciar um programa de visita, disse que vai aos Estados Unidos e para Israel. Houve uma reação muito correta do governo argentino, do presidente Alberto Fernández, que já se dispôs a dar início a uma transição pacífica. Essas três semanas de transição vão ser essenciais para se ter uma ideia mais precisa do que será o novo governo. Tanto na economia, quanto na política externa.
Valor: A eleição de Milei consolida uma nova relação entre os países do Cone Sul? Aquela fase de integração, com uma clara liderança brasileira, ficou para trás.
Bitelli: É um desafio para todos nós. É importante ter em conta que o mundo de 2023 é muito diferente do de 2003, de 2013 ou de 2019. Certos esforços de integração foram feitos com sucesso. A integração regional potencializa a influência de cada um dos Estados que participam dessa relação em outras áreas do mundo, em relação a outros blocos. É preciso um exercício de grande realismo para trabalhar essa integração a partir da situação que hoje é diferente, que contemple governos de diferentes orientações.
Valor: Milei já falou que vai adotar medidas drásticas. A Argentina tem uma economia em situação difícil, com grande taxa de pobreza. E é um país com tradição sindical, de grandes movimentos sociais. O senhor vê risco de eclosão social?
Bitelli: A situação econômica é sabidamente difícil e complicada. Vai requerer certas medidas duras e existe sempre uma possibilidade de reação a medidas restritivas. O governo que assumirá em 10 de dezembro vai ter que levar com muito cuidado essa agenda de medidas novas em termos econômicos, essa agenda de ajustes, justamente levando em conta essa dimensão social e o impacto que essas medidas de ajustes poderiam ter em uma situação que já é complexa. Tenho certeza que isso está na cabeça dos que vão assumir as novas funções e a nossa expectativa é de que a Argentina possa sair da crise. O Brasil fará o que puder fazer para ajudar nesse sentido. Porque nos interessa uma Argentina que não esteja em crise, nos interessa uma Argentina próspera, que cresça, porque quando as coisas vão bem para a Argentina, o reflexo no Brasil é positivo.
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