Na Catalunha, onde está Barcelona, 48% dos moradores consideram que sua região tem recebido turistas estrangeiros em excesso. Situação tem levado a protestos de residentes e iniciativas dos governos locais.
Turistas nos arredores do templo da Sagrada Família, um dos pontos mas visados na cidade
Aline Scarso/BBC
Um verão atípico é como será lembrado o de 2024 na Europa. E não será apenas pelas ondas de calor, mas também pelos protestos contra o excesso de turismo.
Manifestações antiturismo aconteceram em Portugal, Itália e Grécia, e medidas como proibir selfies e cobrar taxas de visitas tiveram que ser anunciadas para conter a busca massiva por ícones europeus.
Mas foi principalmente na Espanha, e especialmente em Barcelona, que a insatisfação dos residentes pela ocupação do espaço público por estrangeiros parece ter atingido o seu limite, com uma série de manifestações ocorrendo de julho a setembro.
A Espanha é o segundo país mais visitado no mundo, atrás apenas da França.
De acordo com uma pesquisa online da empresa YouGov divulgada em setembro, um terço dos espanhóis considera que a sua área tem recebido turistas de fora do país em excesso.
Na Catalunha, onde está Barcelona, o principal destino de turistas na Espanha, essa percepção chega a 48% dos residentes.
Além da impressão de que o turismo internacional tomou o país, um terço dos espanhóis (28%) têm uma visão negativa dos viajantes de fora.
O percentual está bem à frente da França, onde 16% têm uma visão desfavorável dos visitantes estrangeiros, da Alemanha (14%), do Reino Unido (13%), da Itália (11%) e da Suécia (6%).
“Todo mundo dizia que os parisienses tinham fama de mal-humorados, que tratavam mal os turistas, e hoje eu entendo isso. Não se pode julgar estando de fora. É preciso ouvir quem vive aqui para saber o que está acontecendo e como isso nos afeta”, comenta a brasileira Maíra Benício dos Santos.
Ela é técnica de informática, tem 42 anos e mora há 20 em Barcelona, sete deles no bairro de Barceloneta, um dos que mais sente os efeitos da massa de curiosos.
Ela faz coro ao reclamar do aumento do ruído noturno, da sujeira e do congestionamento nas ruas.
Manifestantes seguram faixa com dizeres ‘Diminuição do turismo já’ em protesto em julho
Getty Images via BBC
Quem vive na capital catalã, a não ser que realmente precise, evita se deslocar por áreas apinhadas de gente como o Passeio Joan Borbó, a Rambla Catalunha, o quadrilátero da Sagrada Família e as imediações do Parque Güell.
Para os moradores que precisam acessar regiões com forte presença de turistas, é mais fácil se locomover pelas vias alternativas às ruas e avenidas mais procuradas por visitantes.
“Para mim, o problema diário é que tenho que passar por áreas turísticas extremamente movimentadas para ir trabalhar. Minha forma de locomoção é de bicicleta, e é impossível não perder a paciência com turistas que não prestam atenção e andam no meio da ciclovia”, conta Maíra.
A capital catalã vem batendo seus próprios recordes.
Em 2023, recebeu 15,6 milhões de turistas, quase 10 vezes mais pessoas do que o tamanho da sua população.
Segundo um relatório recente da prefeitura, o município recebeu, de janeiro a julho de 2024, cerca de 7 milhões de visitantes, 6% mais que em 2023.
Só no mês de julho, foram mais de 1,2 milhão de visitantes. A cidade tem 1,6 milhão de habitantes.
Entretanto, o turismo não é a principal atividade econômica de Barcelona: segundo a prefeitura, o setor foi responsável por 13,9% do produto interno bruto (PIB) da cidade em 2023.
Mas a atividade tem um papel relevante na economia da cidade, empregando 13% da mão de obra disponível e gerando um retorno econômico direto de 9,6 bilhões de euros. Os dados são de uma pesquisa de 2023 do Observatório do Turismo, que reúne autoridades e entidades comerciais.
Cerca de 16% das empresas de Barcelona atuam em segmentos turísticos de transporte, hospedagem, alimentação, aluguel de veículos, entre outros.
Em Barceloneta, a tensão entre turistas e moradores é constante.
“À noite, principalmente no verão, as pessoas passam gritando, às vezes brigando umas com as outras porque estão bêbadas. Também há problemas de criminalidade, porque onde há muitos turistas, também há pessoas interessadas em roubá-los”, conta Maíra, mãe solo de uma menina de 7 anos, nascida no bairro.
Por ser uma área relativamente pequena e costeira, o bairro vem sendo descaracterizado desde a remodelação da orla para as Olimpíadas de 1992.
Passou de tradicional moradia de pescadores a lugar da moda, frequentado por pessoas de todo o mundo que podem pagar pelos altos aluguéis de temporada.
Desde agosto até o fim de outubro, suas praias estão recebendo as atividades da 37ª America’s Cup Louis Vuitton, um evento esportivo mundial de vela.
Integrantes do movimento “No a la Copa América, que reúne 150 entidades, ensaiaram um nado coletivo de protesto na praia de Somorrostro em 7 de setembro, mas foram impedidos pela polícia local.
Os manifestantes queriam se manifestar contra eventos que, segundo eles, “privatizam o espaço público com fins elitistas”.
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‘Todo mundo dizia que os parisienses tinham fama de mal-humorados, que tratavam mal os turistas, e hoje eu entendo isso’, diz a brasileira Maíra Benício dos Santos
Aline Scarso/BBC
Em 24 de junho, durante a festa de San Juan, que inaugura o verão europeu e se assemelha ao Ano Novo brasileiro atraindo muitos turistas, vizinhos atiravam água e ovos pelas janelas dos prédios.
“Eu não quero normalizar esse tipo de situação. [Eu observo] a descaracterização dos bairros, a pressão financeira. Havia uma senhora que morou aqui a vida toda e passou o ponto da sua loja de produtos de limpeza porque está na idade de se aposentar. No lugar, abriu mais uma loja de souvenir. A livraria do bairro também fechou para dar lugar a um negócio de vape e maconha. É triste”, afirma a brasileira Maíra, que quer continuar vivendo ali, onde estão a escola e os amigos da filha.
No próximo ano, Maíra terá que renovar o contrato de aluguel do apartamento de 55 metros quadrados em que vive, que custa mensalmente 1.180 euros (mais de R$ 7 mil).
Ela se preocupa com o possível aumento no valor já que, com o passar dos anos, o custo de viver no bairro tem subido.
Paellas congeladas e lojas de souvenirs
David Soler com a Sagrada Família ao fundo; ele diz que até gírias locais estão se perdendo
Aline Scarso/BBC
Enquanto o salário mínimo espanhol é de 1.134 euros mensais (cerca de R$ 6,8 mil), o preço médio de um novo contrato de aluguel firmado no primeiro trimestre deste ano na cidade valia 1.193 euros (R$ 7,2 mil) por mês, um recorde para Barcelona.
O aumento nos preços de aluguel foi de 68% nos últimos dez anos, o que coloca muitos residentes em risco real de perder moradia e com a necessidade de subvenção estatal para arcar com o valor.
O custo de vida, puxado principalmente pela elevação do preço da moradia, é uma queixa entre a população local.
A consequente associação da gentrificação (substituição da população mais antiga por moradores de renda mais alta) dos bairros à chegada massiva dos visitantes estrangeiros também.
Na opinião de David Soler, editor barcelonês de 68 anos, a questão econômica se reflete na tensão social na cidade e é um dos motivos que levou à participação de 4 mil pessoas no protesto “Basta, coloquemos limites ao turismo!” em julho, o qual acabou com manifestantes atirando jatos de água em alguns turistas.
Soler é um dos participantes mais antigos da Assembleia de Bairro pelo Decrescimento Turístico, o grupo que reúne mais de 100 entidades e que organizou a manifestação. A expectativa era receber não mais do que 200 pessoas naquele dia.
“Na assembleia, não achamos que tenha sido bom ou ruim [atirar água], mas não havia controle. Cada um faz o que quer em um contexto como esse”, comenta o barcelonês.
Para ele, esse “fato curioso serviu para colocar nas primeiras páginas dos jornais um fato tão negativo como a invasão do espaço público pelos turistas”.
O barcelonês afirma que as demandas dos manifestantes envolvem não só a questão econômica, mas também o esforço pela manutenção da identidade local.
Ele, que encontrou a reportagem no parque da Igreja da Sagrada Família, diz ter escolhido o local por ser “um exemplo do vazio cultural provocado pelo turismo massivo”.
“Os pequenos comerciantes que costumavam ganhar a vida nesta área estão desaparecendo para dar lugar a lojas de souvenirs ou grandes cadeias de restaurantes que vendem tapas e paellas congeladas e podem pagar 2 mil, 3 mil euros pelo aluguel sem nenhum problema”, aponta.
O editor mora no bairro não central de Congres-Indians e é neto de imigrantes de Almeria, no sul da Espanha, que vieram à Catalunha durante o pós-Guerra em busca de melhores condições de vida.
As Olímpiadas de 1992 impulsionaram o turismo em Barcelona, que antes era sobretudo uma cidade industrial. Desde então, a cidade fez sucesso se apresentando como uma cidade de sol, praia e montanha.
Soler diz que, com as pressões sobre a cultura local, até alguns vocábulos estão desaparecendo, como o verbo “ramblear”, que significa passear pelas ramblas, vias parecidas com os calçadões brasileiros e de uso exclusivo de pedestres.
“Agora, não se pode ramblear porque o espaço está ocupado por turistas que roubaram o espaço público. É impossível tomar uma cerveja na Plaza Real [a 10 minutos caminhando da Rambla Catalunha]. Primeiro, por causa do preço. E segundo, porque está ocupada. Quando você destrói a cultura, é muito difícil repovoá-la. O modo de vida tradicional se perde”, defende Soler.
Quem é o turista que lota Barcelona
Principalmente depois das Olímpiadas de 1992, Barcelona se apresenta como uma cidade de sol e praia
Leonardo Meira via BBC
Praticamente a metade dos trabalhadores do turismo em Barcelona tem contratos temporários e recebe um salário médio de 25.771 euros anuais (em torno de R$ 150 mil), enquanto o salário bruto per capita na cidade é de 33.996 euros anuais (R$ 200 mil).
“Atingimos altos níveis de empobrecimento em um contexto em que é cada vez mais caro viver, e os trabalhadores do setor têm que passar mais tempo morando fora de Barcelona para poderem trabalhar”, comenta Ernest Cañada, coordenador do centro de pesquisa de turismo independente Alba Sud.
Para ele, grandes empresas turísticas e governos estão buscando mudar o perfil turístico na cidade, para que venham os que têm maior poder aquisitivo. Um exemplo disso é a America’s Cup de vela.
“Isso não está acontecendo apenas em Barcelona, mas em geral nos principais destinos turísticos europeus. Todos estão procurando maneiras de se posicionar melhor em um mercado com alto poder aquisitivo por se tratar de um mercado muito menor que o das classes média e trabalhadora, no qual foram investidas várias décadas”, afirma Cañada.
Assim, poderia-se redimensionar a quantidade de turistas sem perder em receita, segundo o pesquisador, o que, a longo prazo, não resolveria o problema da precarização dos trabalhos, mas poderia aprofundar “um processo de elitização da atividade turística”.
Em 2023, a maior parte dos visitantes da cidade foram homens (65%) com 35 anos de idade, em média.
Os turistas vieram principalmente dos Estados Unidos (12.6%), Reino Unido (7.4%), França (7.3%) e Alemanha (5.6%) e chegaram de avião, pagando uma média de 1.250 euros (R$ 7,5 mil) por um pacote turístico para conhecer Barcelona pela primeira vez.
As parciais de julho e agosto deste ano revelam um perfil de turista muito semelhante, com destaque para cidadãos dos Estados Unidos, nacionalidade líder na reserva de hotéis neste período.
Mais de 117 mil norte-americanos ficaram hospedados em hotéis em agosto, pagando uma média de 175 euros (cerca de R$ 1 mil) por diária.
O número está bem à frente das mais de 87 mil pessoas oriundas da França, a segunda nacionalidade que mais se hospedou nesse tipo de estabelecimento no mesmo mês.
“O que estamos vendo é uma dinâmica que aumentou muito significativamente, após a reativação do mercado norte-americano”, pontua o coordenador.
‘Dimensionar para não morrer de êxito’
O turismo tem sido um tema tão central na região que as autoridades disponibilizam, mensal e anualmente, indicadores de demanda e oferta. Além disso, os moradores são regularmente consultados para dar sua opinião.
Em uma pesquisa divulgada pelo Escritório Municipal de Dados em fevereiro, 56% das pessoas afirmaram que o turismo é a atividade que mais traz valor econômico à cidade. Em contrapartida, 61% considera que a cidade já atingiu o seu limite para receber visitantes.
Enquanto 8 de cada 10 entrevistados avaliam que o turismo gera oportunidades econômicas e de emprego para os habitantes de Barcelona, também afirmam que a presença desse tipo de atividade influencia nos preços.
Gerenciar e medir o sucesso de um destino para não morrer de êxito tem sido o lema do governo estadual, que afirma pretender descentralizar o turismo para outras regiões da Catalunha.
“O Conselho Provincial de Barcelona assume a situação de supersaturação com preocupação e responsabilidade. Trabalhamos para o gerenciamento de um turismo consciente, coerente, responsável e sustentável e por um marketing e promoção do turismo de acordo com a capacidade de carga de nosso destino”, respondeu a gerente dos Serviços de Turismo da Província de Barcelona, Soledad Bravo Letelier, em e-mail à reportagem.
Procurada pela BBC News Brasil, a prefeitura compartilhou uma nota oficial em que diz ser “a única grande cidade da Espanha a aplicar o controle de aluguéis” e reafirmou seu compromisso em suspender em 2028 as 10.101 licenças de imóveis turísticos (colocados à disposição em plataformas de acomodações) existentes em Barcelona para aumentar a oferta de habitação para os locais.
“De agora em diante, Barcelona priorizará a proteção da moradia em detrimento do turismo”, garante.
Placa na orla diz: ‘Barcelona: nossa casa. E sua’
Aline Scarso/BBC
Medidas para frear o excesso
De organizações sociais à Associação de Apartamentos Turísticos de Barcelona (Apartur), há um ceticismo geral sobre a capacidade da administração pública em reduzir a capacidade de alojar os visitantes até 2028 por meio da cassação das licenças dos alojamentos turísticos.
“É juridicamente inviável. Se o prefeito quiser remover essa oferta [de residências para o fim turístico], o que significa expropriar um direito, ele pode fazê-lo, mas terá que pagar. Porque a lei, a Constituição e a lei de desapropriação estabelecem claramente que tem que haver uma contrapartida”, defende María Muro, diretora-geral da Apartur.
Segundo ela, os imóveis com essa finalidade representam menos de 1% das moradias na cidade e seria necessário construir mais casas e apartamentos públicos para a população se a prefeitura quer, de fato, influenciar no preço dos alugueis.
O diretor geral do Grêmio de Hotéis de Barcelona, Manel Casals, também fala em promover a oferta de apartamentos públicos para atingir o mesmo objetivo.
De concreto mesmo, além do anúncio do fim das licenças de apartamentos turísticos para 2028, a cidade tem investido desde gestões passadas em educar o turista para o uso da cidade, proibindo por exemplo o uso de alto-falantes nas ramblas por guias turísticos e o fumo nas praias (ainda que este nem sempre seja cumprido).
Também foi anunciado em 22 de agosto, durante a inauguração da America’s Cup de regata, a mudança do slogan promocional de “Visit Barcelona” (“Visite Barcelona”) para “This is Barcelona” (“Essa é Barcelona”).
De acordo com o site da prefeitura, essa mudança “se alinha com a nova estratégia de direcionar visitantes de maior valor que geram maior retorno social”.
A cidade também tem taxas turísticas diárias, e uma delas é especificamente paga por hóspedes de hotéis e passageiros de cruzeiros. Estuda-se ainda aumentar o valor pago por quem chega de cruzeiro e passa menos de 12 horas na cidade.
Enquanto isso, em outras capitais europeias, medidas com objetivo parecido vêm sendo tomadas.
Desde maio, Amsterdã, na Holanda, não permite a criação de novos hotéis e tem como perspectiva diminuir a quantidade de cruzeiros até 2035. Praga, na República Tcheca, limitou o número de ônibus turísticos na área central.
Na Itália, Veneza proibiu grupos turísticos com mais de 25 pessoas e estabeleceu taxas diárias de visitantes para reduzir o número de pessoas que pernoitam no local, assim como Santorini, na Grécia, anunciou que cobrará 20 euros de cada pessoa que desembarcar na ilha vinda de cruzeiros durante a alta temporada.
A pesquisa da YouGov também indicou que europeus têm “muita” ou “bastante” simpatia pelas manifestações de moradores contra o excesso de visitantes e está de acordo com medidas para amenizar o problema.
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