Cansada de guerra, nova geração se distancia de lideranças e quer paz | Mundo – Finanças Global On

Cansada de guerra, nova geração se distancia de lideranças e quer paz | Mundo

Eles estão a 100 km um do outro. Cada um de um lado da guerra travada entre Israel e militantes do grupo terrorista palestino Hamas.

Mauricio Lapchik, uruguaio de Montevidéu, mudou-se para Israel em 2013 e vive atualmente em Tel Aviv. Ahmed al-Aydi nasceu e vive no sul da Faixa de Gaza, na cidade de Khan Yunis.

Eles não se conhecem, mas, como muitos jovens israelenses e palestinos, estão cansados de viver sob um ambiente de eterno conflito e aspiram um futuro em paz.

Nos últimos dias, a reportagem do Valor conversou com os dois, por telefone e por meio de mensagens via WhatsApp.

Suas ideias parecem distintas daquelas defendidas pelos líderes atuais, o primeiro-ministro israelense, o direitista Benjamin Netanyahu, e os radicais do grupo terrorista palestino Hamas e de seu braço armado, o Izz al-Din al-Qassam Brigades, que dão as cartas na Faixa de Gaza.

Mauricio tem 32 anos e Ahmed completa 24 no fim do mês. Em alguns anos, homens e mulheres de sua geração – ou talvez eles mesmos – estarão em posições influentes em Israel e nos territórios palestinos de Gaza e da Cisjordânia. E talvez, só então, como uma troca geracional, será possível ver uma paz estável e justa na região.

Hoje, no entanto, é difícil pensar nisso.

No domingo, enquanto o Exército de Israel intensificava os ataques aéreos à Faixa de Gaza e as tropas faziam uma investida terrestre, Ahmed – com quem a reportagem vinha se comunicando desde a quinta-feira – escreveu: “Talvez a hora de outra pessoa tenha chegado e a minha hora esteja próxima. Estou aqui agora respondendo a você, mas talvez daqui a pouco um míssil possa me atingir e eu seja uma das vítimas que estão se espalhando pelo país.”

Ahmed trabalha como advogado e instrutor na área de direitos humanos e é um dos integrantes do Youth Advisory Panel (YAP) grupo de jovens apoiado pelo Fundo das Nações Unidas para Populações (UNFPA). O YAP mobiliza jovens em diversos países a ajudarem na formulação de iniciativas e políticas para sua geração. Foi por meio da coordenação da juventude do fundo da ONU na região que a reportagem entrou em contato com Ahmed.

Ataques de Israel já deixaram 8,5 mil mortos em Gaza; vítimas dos militantes do Hamas são 1,4 mil

Como qualquer morador de Gaza, Ahmed já viu muitos bombardeios. Mas não dá para se acostumar. Ao ler a pergunta “qual é hoje seu maior medo?”, respondeu: “Meu maior medo é perder familiares, amigos e conhecidos e destruírem ainda mais Gaza e sua infraestrutura, ou ser morto e ninguém reconhecer meu corpo”.

Ahmed preferiu conversar por mensagens porque o sinal claudicante de internet dificultaria uma longa ligação.

Os bombardeios atuais de Israel a Gaza começaram logo depois do ataque coordenado, sangrento e sem precedentes que militantes do Hamas fizeram no sábado 7 de outubro ao sul do território israelense.

Mais de 200 jovens – com idades que regulavam com as de Ahmed e de Mauricio – que estavam em um festival de música no sul de Israel foram assassinados indiscriminadamente por militantes do Hamas. Outros mais de 200 foram sequestrados a arrastados para a Faixa de Gaza. Desde então, apenas alguns foram libertos.

A resposta de Israel, tratada como direito a autodefesa pelo governo e criticada por muitos como desproporcionalmente violenta, veio de forma rápida.

“As ruas da minha cidade ficaram cheias de escombros, fumaça de bombardeios, cadáveres sob os escombros e o cheiro de sangue das vítimas da guerra”, contou Ahmed.

Na foto (tirada antes da guerra) que mantém no perfil do WhatsApp, ele passa uma ideia de ser como tantos rapazes de 20 e poucos anos pelo mundo: alegre, decidido e vaidoso. Na foto, ele aparece sentado no chão com as pernas cruzadas, jeans, malha vermelha, tênis branco, um relógio vistoso no pulso, o lenço palestino sobre os ombros e um sorriso. Ao fundo, a cidade cor de areia da antiga Jerusalém com a mesquita de Al-Aqsa em destaque. Mas agora o Ahmed da imagem não combina com o Ahmed das mensagens.

“Perdi um número inimaginável de pessoas. Quando eu estava contando quantos familiares, amigos e conhecidos perdi ontem, cheguei ao número de 194 vítimas, e talvez haja mais do que isso, e saberei disso após o fim da guerra. Devido à guerra em andamento, perdemos muito contato com muitas pessoas. Há pessoas sobre as quais não ouvimos nenhuma notícia até hoje”, relatou ele na quinta-feira.

Autoridades em Gaza dizem que o número de palestinos mortos passa de 8.500. O governo de Israel diz que, ao todo, o ataque do Hamas no dia 7 matou 1.400.

De Tel Aviv, por telefone, Mauricio também relatou o ambiente de luto iniciado com o pesadelo de 7 de outubro que ainda não terminou. “A primeira coisa que quero dizer é que não é possível imaginar a situação das pessoas que têm seus parentes sequestrados pelo Hamas. Então, a minha solidariedade a elas. Escutei várias famílias que estão quase implorando que se dê prioridade ao resgate dos reféns”, contou o uruguaio, que é diretor relações internacionais do Peace Now e mestre em Religião Comparada pela Universidade Hebraica de Jerusalém. O grupo pacifista foi criado em 1978 por um grupo de soldados e oficiais de Israel em um momento de negociações de paz entre israelenses e egípcios. Um de seus apoiadores e militantes foi o premiado escritor Amós Oz (1939-2018).

Ao longo dos anos, integrantes do Peace Now têm se renovado nas denúncias à política de expansão de assentamentos judaicos em áreas palestinas.

Aydi: “Meu maior medo é perder familiares e amigos e destruírem ainda mais Gaza” — Foto: Arquivo pessoal
Aydi: “Meu maior medo é perder familiares e amigos e destruírem ainda mais Gaza” — Foto: Arquivo pessoal

Mauricio acompanha o desenrolar da guerra de uma forma diferente da de Ahmed. Tem mais liberdade para expressar uma visão crítica sobre o governo do país que escolheu para viver. Dentro de Gaza, governada por um partido político que Israel, EUA e União Europeia consideram como um grupo terrorista, Ahmed, que é muçulmano sunita, pareceu evitar manifestar posições abertamente críticas ao Hamas.

Quando perguntado se a juventude de Gaza abraça o ideário do grupo islâmico, preferiu não digitar uma resposta específica. Quando perguntado como as pessoas na sua cidade reagiram ao saber dos assassinatos no festival de música dos sequestros, disse que “talvez haja um pouco de desinformação” e que israelenses que foram libertados teriam dito que seus captores se comprometeram a não matar os civis e tratá-los com respeito.

Entre os dois há também outra clara diferença. Mauricio está mais seguro. Cidades israelenses mais próximos à fronteira com a Faixa de Gaza ficaram na linha de fogo dos mísseis lançados por homens do Hamas e das Brigadas al-Qassam. Tel Aviv está um pouco mais afastada do raio de ataque.

Mas todo o país ainda vive um trauma e neste momento falar de paz, de construção de acordos com palestinos, do reconhecimento de um Estado palestino parece agora a muitos israelenses ideias fora do lugar, quase ofensivas.

“Estamos vivendo uma situação muito delicada e quando alguém expõe ou compartilha uma mensagem defendendo cessar-fogo ou algum tipo de solução temos visto jornalistas e ativistas sendo atacados ou, em alguns casos, sendo perseguidos por algo que tenham manifestado nas redes sociais. Isso é muito perigoso para a sociedade israelense”, disse Mauricio.

O Peace Now defende há muito tempo a Solução de Dois Estados. Uma ideia que teve impulso anos atrás, mas que, como reconhece Mauricio, perdeu apoio entre a classe política nos últimos anos.

“É muito difícil falar agora [de uma solução que envolva o reconhecimento de um Estado palestino] porque o trauma aqui em Israel é muito grande. Esperamos que no futuro, assim que passe um pouco tempo, e geralmente o que o tempo faz é curar, esperamos que mais pessoas passem a defender a necessidade de uma solução política para um conflito tão sangrento e tão terrível com tantas vítimas inocentes”, disse Mauricio.

Solução política – ou qualquer coisa que se assemelhe a isso – é algo que a geração de Mauricio e Ahmed nunca viu. Durante a vida dos dois, à exceção de um ou outro período, a relação entre Israel e palestinos, tem sido marcada quase todo ano por mísseis, sequestros, ataques massivos aéreos, tiros, bombas, protestos, prisões.

Depois de tanto sangue e sofrimento, os dois jovens usam palavras que apontam para o mesmo lugar.

O diretor do Peace Now diz: “Ao fim e ao cabo [uma solução política] levaria também ao reconhecimento do direito de autodeterminação do povo palestino. Um Estado do lado do Estado de Israel. Escutamos a comunidade internacional e temos visto de diferentes países, tanto na Europa como América Latina e, claro, nos EUA, essa solução como a uma única solução possível e viável”.

O advogado palestino descreveu assim seu ponto de vista: “A adoção dos princípios do direito internacional e dos tratados e acordos internacionais, garantindo a justiça, a não discriminação e a igualdade em sua aplicação. Na minha opinião, essa é a melhor maneira de resolver esse conflito e, talvez, seja por meio da obtenção de uma solução de dois Estados e de uma paz internacional justa, sem mais derramamento de sangue e de morte de civis, preservando o direito de autodeterminação dos palestinos e seu direito de defesa de acordo com o que está estipulado no direito internacional, nas resoluções das Nações Unidas e de seus comitês e nos acordos internacionais”.

Mas no labirinto que é o enredo vivido por palestinos e israelenses pós-1948, a ideia de paz que passa pela autonomia palestina e a coexistência com Israel tem muitos desafios e perguntas ainda sem respostas.

Duas são cruciais: Quais seriam as fronteiras de um Estado palestino? As de 1967, antes da anexação por Israel de terras palestinas, ou as fronteiras deixariam em território palestino os assentamentos judaicos que ano após ano avançam como forma de tentar forçar um reconhecimento do alargamento do mapa de Israel?

E há perguntas mais urgentes. Entre elas, o que será da população de Gaza em uma grande invasão terrestre de forças israelenses. Mauricio e Ahmed não têm dúvidas: preveem mais mortes e destruição.

Eles conhecem de muito perto as limitações e dificuldades de suas aspirações de um futuro sem guerra.

“Há uma diferença entre desejo, realidade e crença, e talvez eu deseje isso, que é viver em paz em meio a essa devastação que estou vivenciando agora, mas talvez eu deva esclarecer que tanto o lado israelense quanto o lado palestino estão passando por uma divisão interna, e é isso que dificulta o processo de alcançar a paz ou uma solução. Dois Estados ou fusão”, apontou Ahmed pelo Whatsapp, quando perguntado se vê uma paz estável no horizonte das gerações atuais.

Mauricio tampouco mostra muita convicção de que isso esteja num futuro visível.

“Nesse momento é muito difícil. É importante construir um futuro melhor para as crianças e para os jovens que vivem aqui, mas, infelizmente, depois de tudo que aconteceu eu não tenho como dizer que se essa situação mais positiva se dará no futuro próximo. O que eu posso dizer para as pessoas de um lado e de outro – e eu também me incluo nessa lista – que façam todo o possível para que não tenhamos que continuar chorando vítimas inocentes desse conflito e espero que em algum momento essa situação traga algum tipo de solução e de reconciliação. E que possamos olhar juntos um futuro de paz.”

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