A economia política das milícias | Bruno Carazza – Finanças Global On

A economia política das milícias | Bruno Carazza

Numa noite de julho de 2006, Renato Freixo chegava em casa com a esposa quando foi brutalmente assassinado a tiros. Tinha 34 anos e duas filhas pequenas. Foram longos quatorze anos até a polícia concluir as investigações sobre a autoria do crime.

Renato era síndico de um condomínio em Niterói e havia demitido dois ex policiais militares que trabalhavam como seguranças da propriedade. Eles foram os mandantes da execução. Um terceiro ex-PM praticou os disparos.

O crime não teve conotação eleitoral, mas a tragédia familiar motivou seu irmão, à época candidato a deputado estadual, a enfrentar a relação umbilical entre milicianos e políticos no controle de áreas e negócios no Estado do Rio de Janeiro.

Um pedido para a realização de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as milícias foi o primeiro projeto apresentado por Marcelo Freixo assim que ele tomou posse na Assembleia Legislativa do Rio, em janeiro de 2007.

A proposta ficou engavetada por mais de um ano, até que outro crime bárbaro levou a população carioca a exigir mudanças. Em maio de 2008, uma repórter, um fotógrafo e um motorista do jornal “O Dia” passaram duas semanas na favela do Batan, Zona Oeste do Rio, disfarçados de moradores para retratar a atuação de um grupo de milicianos que controlava a área. Descoberta, a equipe do jornal foi violentamente torturada.

A comoção gerada pela brutalidade dos milicianos levou a sociedade a pressionar os deputados pela abertura da CPI. Presidida por Marcelo Freixo, a investigação parlamentar sobre a ação das milícias no Rio de Janeiro esmiuçou o funcionamento desses grupos criminosos, assim como a forma como militares e ex-militares se imiscuíam na política para aumentar seu poder e seus lucros.

Em 2008, o ex-deputado estadual Marcelo Freixo (RJ), presidiu a CPI das Milícias na Alerj. Foto: Valor
Em 2008, o ex-deputado estadual Marcelo Freixo (RJ), presidiu a CPI das Milícias na Alerj. Foto: Valor

Há mais de quinze anos, o relatório final da CPI das milícias já havia traçado a economia política que governa a atuação dos milicianos no Rio de Janeiro. As milícias surgiram como grupos de militares ou ex militares que passaram a oferecer proteção contra o crime e o tráfico de drogas em determinadas regiões do Rio. E cobravam uma taxa por isso, extorquindo moradores e comerciantes.

À medida em que o domínio das milícias se alastrava, esses grupos começaram a expandir seus negócios para outras atividades econômicas. O relatório de Freixo indica a exploração de serviços de transporte alternativo (vans), venda de gás de cozinha e água mineral e ligações clandestinas de energia elétrica (os famosos “gatos”), TV a cabo e internet (“gatonet”).

Essa ampliação dos negócios da milícia só foi possível com a ajuda de agentes do Estado. Além da proteção do comando da polícia militar da região, os milicianos contam com a vista grossa de agentes de fiscalização da prefeitura para a manutenção de seus negócios ilegais.

Valendo-se das pesquisas do sociólogo Ignácio Cano, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o relatório da CPI apresentou as condições que caracterizam as milícias: “1. controle de um território e da população que nele habita por parte de um grupo armado irregular; 2. o caráter coativo desse controle; 3. o ânimo de lucro individual como motivação central; 4. um discurso de legitimação referido à proteção dos moradores e à instauração de uma ordem; e 5. a participação ativa e reconhecida dos agentes do Estado”.

Com o passar do tempo, quando as ambições dos milicianos crescem para outros negócios, seu poder político precisa aumentar. É aí que milicianos começam a se lançar na política, candidatando-se a cargos de vereador e deputado estadual.

No relatório da CPI há menções a milicianos que chegaram à Câmara Municipal do Rio e à Alerj, como o então deputado Natalino, colega de plenário de Freixo, e os vereadores Nadinho, Deco, Cristiano Girão e Jerominho.

O inquérito que levou à prisão do deputado federal Chiquinho Brazão e do conselheiro do Tribunal de Contas Estadual Domingos Brazão como prováveis mandantes do assassinato da vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes, em 2018, é apenas mais um capítulo dessa trama que envolve violência, dinheiro e poder.

A vereador Marielle Franco, assassinada em 2018 juntamente com seu motorista, Anderson Gomes. — Foto: Divulgação
A vereador Marielle Franco, assassinada em 2018 juntamente com seu motorista, Anderson Gomes. — Foto: Divulgação

As investigações até o momento indicam que a motivação imediata das mortes está ligada às discussões sobre a aprovação de um projeto de lei para a regularização imobiliária de terrenos sob posse da milícia da Zona Oeste do Rio, patrocinada pelos irmãos Brazão, que teria tido a oposição da vereadora Marielle Franco.

O envolvimento das milícias com atividades imobiliárias, inclusive empreendimentos lançados pelo programa Minha Casa Minha Vida, já havia sido mapeado pelos pesquisadores do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense. Utilizando dados sobre ações policiais e lançamentos imobiliários, o grupo coordenado pelo professor Daniel Hirata demonstra como as milícias atuam ocupando ilegalmente áreas públicas, protegendo construções irregulares de casas e prédios e posteriormente mediante, junto ao poder público, a obtenção de licenças e autorizações para regularizar os imóveis.

Nessa expansão de negócios dos milicianos para o lucrativo setor imobiliário, a participação isolada de políticos oriundos desses grupos paramilitares não é mais suficiente. Para aprovar leis de regularização fundiária ou de uso e ocupação do solo é preciso contar com uma bancada maior de vereadores ou deputados estaduais, assim como ter conexões com secretários e até prefeitos e governadores.

As milícias então partem para financiar as campanhas eleitorais de políticos que apoiam suas ações e, mais do que isso, tornam-se sócios de seus empreendimentos criminosos. A trajetória política dos irmãos Brazão ilustra bem essa estratégia, que já foi também documentada pela Ciência Política.

Em artigo de 2015, os pesquisadores Daniel Hidalgo (MIT) e Benjamin Lessing (Universidade de Chicago) publicaram evidências estatísticas de mudanças no padrão de votos nas regiões dominadas por milícias no Rio de Janeiro. Levando seus representantes a ocuparem cargos no legislativo municipal, estadual e até mesmo federal, as milícias aumentam sua influência para aprovar legislação favorável (como a regularização imobiliária), buscam maiores orçamentos para aumentar a lucratividade de seus negócios (alocando mais recursos no combate a seus rivais do tráfico de drogas, por exemplo) e sobretudo abrem portas de gabinetes no Judiciário e do Executivo.

Nesse sentido, a prisão do delegado Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil do Rio, evidencia como instituições estatais são corrompidas pelas milícias em favor da impunidade. A demora de 14 anos para elucidar o assassinato do irmão de Marcelo Freixo e os seis anos até que se deslindasse a execução de Marielle e Anderson são prova desse processo de captura institucional.

Para Hidalgo e Lessing, a infiltração das milícias no sistema político é uma estratégia bem-sucedida de enfraquecer o poder do Estado “por dentro”. A investigação do caso Marielle, portanto, lança luz para um problema que não é um caso isolado. Ela pode puxar um novelo que vai evidenciar um modelo de negócio criminoso, que se apropria da política e do Poder Judiciário, de forma bastante preocupante.

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